quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Jorge de Sena


A Portugal

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.

Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.


Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.


Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço.
És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não

Jorge de Sena faria hoje 92 anos.

Poema retirado daqui

3 comentários:

  1. Ode para o Futuro

    Falareis de nós como de um sonho.
    Crepúsculo dourado. Frases calmas.
    Gestos vagarosos. Música suave.
    Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
    Paisagens deslizando na distância.
    Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
    e amávamos serena e docemente.

    Uma angústia delida, melancólica,
    sobre ela sonhareis.

    E as tempestades, as desordens, gritos,
    violência, escárnio, confusão odienta,
    primaveras morrendo ignoradas
    nas encostas vizinhas, as prisões,
    as mortes, o amor vendido,
    as lágrimas e as lutas,
    o desespero da vida que nos roubam
    - apenas uma angústia melancólica,
    sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

    E, em segredo, saudosos, enlevados,
    falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

    Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

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