quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cães como nós


Paula Rego, Mulher Cão

Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!


Alexandre O'Neill
Poesias Completas. 1951-1986
Lisboa, INCM, 1990 (3ª 



2 comentários:

  1. Que eu saiba
    O cão, por lá ficou nesse poema
    Mas não tenho pena,
    nada mesmo a lamentar
    a não ser apenas
    a minha falta de coragem
    de calar o seu ladrar
    de o soltar
    de o açaimar
    de contra os tiranos
    atiçar

    Não
    não fiz nada
    para atiçar o cão

    Beijo de agradecimento redobrado por me dar O´Neil

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