segunda-feira, 16 de agosto de 2010

À segunda, segundo Saramago (2)

"Ao terceiro dia achou-se ridículo e não desceu, fez-se esquecido e desejou que o esquecessem. Era não conhecer Salvador. Na hora extrema bateram-lhe à porta, Lídia entrou com a bandeja, colocou-a sobre a mesa, dissera, Bons dias, senhor doutor, com naturalidade, é quase sempre assim, um homem rala-se, preocupa-se, teme o pior, julga que o mundo lhe vai pedir contas e prova real, e o mundo já lá vai adiante, a pensar noutros episódios.
(....)
Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta, e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio, atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo, virou costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, (...)

Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada, fechou os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha, na rua passou um eléctrico, talvez o último, quem será que não quer dormir em mim, o corpo inquieto, de quem, ou o que não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro, ou esta parte de mim que cresce, meu Deus, as coisas que podem acontecer a um homem. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às escuras, guiando-se pela luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco da porta, depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam no seu tempo os cruzados, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os castelos, e as armaduras, depois, sem saber se ainda está acordado ou dorme já, pensa nos cintos de castidade de que os senhores cavaleiros levaram as chaves, pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio, fechada está, um vulto atravessa tenteando, pára à beira da cama, a mão de Ricardo Reis avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele cala-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento."

(O Ano da Morte de Ricardo Reis - trechos das paginas, 97, 98, 99 - 2ª edição autografada)

4 comentários:

  1. Ariel,
    Ia eu com uma ideia préconcebida de lhe isolar uma frase, um parágrafo uma qualquer parte do texto para depois lhe acrescentar dois ou três adjectivos bloguescos, mas desisti. Dei comigo a desejar transcrever todo o texto. Assim, fica-me um só qualificativo: SUBLIME

    AQUI, ÀS SEGUNDAS ASSINO-ME

    "Apóstolo Rogério"

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  2. Rogério,
    Obrigada meu amigo. Quando decidi colocar aqui esta trecho desta obra prima, pensei logo nesta passagem, que numa mais esqueci. Fui buscar o livro à estante, e ele abriu-se exactamente nesta parte. Há coisas assim, inexplicáveis.

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  3. Belíssima escolha, este extracto de O Ano da Morte de Ricardo Reis que, como diz, é uma obra prima!
    Conheci Saramago, pessoalmente. Tive o privilégio de com ele ter convivido. Acompanhei-o no inesquecível trajecto para escrever Viagem a Portugal. Possuo quase toda a sua obra, a maior parte dos livros, autografados.
    Foi com imensa satisfação que a encontrei no grupo de apóstolos! Bem haja.
    Abraço

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  4. Caro Carlos Albuquerque,
    Muito obrigada pelo seu comentário. A obra de Saramago é felizmente vasta, mas esta passagem faz parte de um pequeno role de impressões fortes que nos ficam para o resto de vida.
    Um abraço.

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